domingo, 25 de janeiro de 2015

Tosse

Há tosse cavernosa, tosse seca e tosse molhada. Tosse de cão, de elefante e até gatinhos. Tosse alérgica e do pó. Do ar condicionado. Da que vem aqui de trás, da funda e da curta. Tosse grande e tosse pequenina. Tosse com humidade. Tosse que não sai. Tosse de reflexo e de refluxo. Tosse de farfalheira, pieira e estridor. Tosse rouca, grave e com gravidade. Tosse aspirativa e aflita. Tosse de engasgo. Tosse crónica e persistente. Aguda e subaguda. Produtiva ou não. Um ligeiro aclarar de garganta. Tosse educativa, a mais ouvida nestes dias.
Para todas elas, sustenha a respiração e espere não ficar contaminado.

(Café Contexto 4/52)

domingo, 18 de janeiro de 2015

Maria

Era Maria de nome, como tantas outras. Um nome corrente, usual. Vulgar, como não era a Maria em questão. Um nome não faz a pessoa. Todas as Marias são diferentes. Há Marias de tudo e para todos. Maria é um nome bonito. Mas esta não era só Maria. Tinha também nome de rapaz. Contrariando as probabilidades, de Maria-Rapaz não tinha nada. Longo cabelo escuro e tez caramelizada. Curvas novas bem definidas. Senhoril e sempre bem apresentada. Abundava em si a frescura de alguém que tem a vida toda pela frente.
Podia ter sido jornalista ou enfermeira. Alto poder de observação. Ouvido mais que preparado. Sentido crítico apurado e língua afiada. Sempre informada, sempre em cima do acontecimento. Defensora dos oprimidos. Mãe adoptiva de todos os pequenos. Arisca, bem atinada. Coração grande, cheio de emoções fortes e aventuras ainda por viver. Era Maria. Mas Maria nunca foi só Maria. Trazia em si todos os sonhos deste mundo.
(Café Contexto 3/52)

domingo, 11 de janeiro de 2015

Andorinhas

Os meus amigos voaram para longe. São andorinhas. Estão em locais distantes a maior parte do ano. Abriram mão de um país e abriram asas a outros. Foram. Tiveram essa coragem. Portugueses novos, livres, mas obrigados a sair de casa. Uma nação disforme e injusta.
São andorinhas. Só as temos de vez em quando. Foram uma a uma. Cada qual na sua vez. Tantas, que se perdem os dedos. Mandam bicadas e notícias de vez em quando. Fazem novos ninhos longe, numa casa mais acolhedora e quente. Voltam no Verão e no Natal, quando a saudade bate forte no peito. Estando cá, dividem-se. Multiplicam-se por todos os beirais, verificando se tudo está como era previamente. As Primaveras são sempre diferentes. Antes de irem, trejeiteiam o céu preocupadas mas felizes ao final da tarde, quando o sol quase se põe e menos um dia falta para apartarem.
Nós, os que ficamos por cá, ansiamos pela passagem do tempo. Pela passagem das estações. Pelo sorriso do sol. Pelo calor dos amigos. Deliramos. Achamos que sentimos um bater de asas. Que ouvimos gargalhadas. Esperamos que o vento mude, e os traga de volta. Com o coração apertado e nostálgico.
Nós, os que ficamos por cá. Com a coragem de ficar.

(Café Contexto 2/52)
 

Lógica

Escrevo porque me dá um distanciamento das situações. Faz-me ver a vida por outros olhos. Como quem observa de longe, e analisa assim o que se passa. Deste modo, consigo pensar logicamente. As emoções ficam de lado, não distorcendo a razão. O nevoeiro desaparece, e tudo se torna mais nítido.

(Café Contexto 1/52)