domingo, 15 de fevereiro de 2015

Azul

Vinte centímetros. Vinte centímetros, apenas. A amplitude do meu mundo reside em vinte centímetros. Para lá, tudo é uma névoa difusa. Um ambiente de nevoeiro e de sombras. Os contornos inexistentes. As linhas inexpressivas. Um borrão de tintas. Pinturas a aguarela.
Distâncias. Céu, estrelas, aviões, horizonte. Tudo enublado para lá dos vinte.
Um mundo subaquático e insípido.
Amarrar alguém. Os olhos mais iguais aos azuis morreram já quase cegos, dependentes de outros castanhos. Sujeição. Os meus não se prendem com dioptrias, mas com a indolência de um nervo. Não sou invisual, e sou grata por isso, mas condiciona-me. Não me reconheço ao espelho porque os meus olhos não chegam lá. Não me lembro dos joelhos e acho que não tenho dedos dos pés.  Quando os olhos falham, o foco passa naturalmente ao próximo. Como não observo, observo-me. Direcciono-me ao já apreendido, ao já confortável, ao já em mente. Alma gentil por vezes. Devaneios frequentes. Intelecto complicado. De evitar andar sem ajudas oculares, pois o meu pensamento é bem menos concreto do que o abstrato do real.

(Café Contexto 7/52)

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Patins

Aprendi a andar de patins há quase tanto tempo do que quanto aprendi a caminhar. A dar os primeiros deslizes tão naturalmente como os primeiros passos. Contrariando a lógica normal das coisas, só muito depois me equilibrei numa bicicleta. Era difícil andar numa só pista. Parecia que não fazia sentido. Os patins sempre foram melhores amigos. Memórias boas de momentos bem passados. Cheiro a borracha e sons característicos. Curvas, serpenteios, equilíbrios e hesitações. Derrapagens, voltas, circuitos e viragens, escorregadelas e trambolhões. Na vida, tudo deveria ser como aprender a patinar. Ensinarem-nos primeiro a cair e a levantar, a pormo-nos de pé devagarinho, para não escorregar novamente. Só depois avançar, nunca baixando os braços, olhando sempre para a frente. Cautelosamente, mas aproveitando o momento.

Conversas boas. A vontade de fazer algo com tão queridas recordações.
Fim-de-tarde. Frio cortante. No conforto do habitual vento desconfortável. O deslizar pausado e prazeroso, que nunca se esquece. Felicidade nas mais pequenas coisas.

(Café Contexto 6/52)

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Caminhava sozinho. Os seus passos tocavam as paredes do túnel, que lhe retribuíam.
Num qualquer túnel. Sem interesse da hora ou do dia. Quando se está preso, deixa de haver diferenças. Os dias são iguais. Os dias são só dias.
Vida, linha contínua imparável. Estados estacionários proibidos. Mais importante que a partida ou a chegada, o sorver da passagem.
Caminhava sozinho não solitariamente. Só apenas. Não por opção.
Não se manifestava, retendo tudo para si. Dois olhos e dois ouvidos, com uma só boca, muito mais devemos apreender do mundo em geral do que expressar uma opinião.
Deixar-se ir. Não falar. Não contestar. Seguir em frente. Não hesitar. Não olhar para trás.
Cinzentos, os dias iguais. Afazeres pendentes, que não interessavam pois no seu silêncio, o ruído dos seus pensamentos tornava-se ensurdecedor

(Café Contexto 5/52)


Fotografia de JPedro Martins