domingo, 12 de julho de 2015

Bigodes

Tudo muda com um gato dormindo a nossos pés. Vestido a rigor, de fato preto, colarinho, mangas e meias brancos. Bigodes claros, pinta na ponta da cauda. Elegância em quatro patas.
Dorme profundamente agora. Respira sossegado. Agita-se de quando a quando, atrás de um pardal voando, ou perseguindo uma mosca marota. Enrosca-se, ensonando, tal pescadinha de rabo na boca.
Atravessa-nos os passos, acaricia-nos as pernas. Salta-nos para o colo, rouba-nos a cama. Diverte-se com sacos plásticos, delira com caixas de cartão. Faz barulho quando alguém chega. Mia, conversando, até mais não. Olha o infinito, sonhando ser pássaro. Observa atentamente quem passa. Segue, com os olhos e bigodes tão próprios. As orelhas afiadas, os instintos tão prontos. Limpeza perfeita de língua, asseio extremo, pelagem brilhante. Empurra-me a pedir mimo. Vem encaixar no espaço de sofá que deixo vazio.
Ronrona-me, caro gato, que eu gosto.

(Café Contexto 28/52)

domingo, 5 de julho de 2015

Valente

Papel amarrotado, amachucado, vincado e envelhecido pelo tempo. Estórias, mapas antigos, terrenos acidentados. Com sulcos e saliências profundas. Outras vidas, outros continentes. Notam-se-lhe, quando me aperta a mão. Ele pergunta-me como estou, eu penso em tudo o que ambas já teriam passado.
É Valente de nome, como tinha sido valente de vida. Valente por responder a ordens superiores. Militar de topo. Sem medos, sem hesitações. Um pau mandado, importante, sujeito até a condecorações. Relatos de armas, de mulheres bonitas e de crianças sem pais. De negrura e cores fortes. Uma África antiga, cheia de aromas, calor e mortes.
Noites não dormidas contínuas. De silêncios, ceifados em tempos de guerra. Episódios repetitivos, de fantasmas, de ruídos. Uma casa vazia, enchida de explosões, gritos e espingardas.
Retornou, depois de Abril. Dedicou-se às flores e à horta. Lua e estações, as suas mais verdadeiras amigas. Planta e reproduz uma infinidade de vegetais, de quem fala e estima, com o maior dos carinhos. Pede assim perdão, na terra. Em cada planta nova, um novo ser, sem sangue, mas de seiva corrente.

(Café Contexto 27/52)