domingo, 31 de maio de 2015

Herbário

Saí à rua com outros olhos.
São várias. Cada uma em seu pé. Um conjunto. Um jardim. A desfrutar à minha volta.
Pessoas-planta. Mulheres de existência, flor de nome.
Todas precisam de água, alimento e de quem delas trate. Conhecer as necessidades e problemas, tão próprios de cada uma, num desfolhar de conversas. Várias de cores garridas, outras mais sóbrias. Umas mais opulentas, outras mais humildes. De gostos tão diferentes, de perfumes e preocupações tão particulares. Lúcia Margarida Lima, Hera Silva, Yasmin Campos, Jacinta Mariano, Orquídea Maia, Malvina Salgueiro, Maria Liz Nogueira, Floriana Castanho, Rosa Oliveira, Clementina Sobreira.
Senhoras-flor. Colorindo a vizinhança.
Eternizo-as todas no mesmo sítio. Um pequeno herbário. Lindas, cada uma à sua maneira. Todas flora. Etéreas e eternas.

(Café Contexto 22/52)

domingo, 24 de maio de 2015

Melancolia

Café. Chá. Várias chávenas depois. E esta melancolia persiste.
Por vezes chega, e vem para ficar. Pseudo-depressão sem causa específica, sem causa aparente. Falta de entusiasmo, nulidade de vontade, desânimo. Húmores trocados ou, talvez, influência de saturno. Há-de ser dos astros, ou do tempo. Uma núvem negra que paira sobre a cabeça e não dispersa. Nevoeiro de ideias. Anorexia emocional. Humor escurecido. Languidez. Preguiça corporal.
Melancolia. Talvez seja só mais uma experiência enriquecedora da alma.
 
(Café Contexto 21/52)

domingo, 17 de maio de 2015

Retalhos

Havia um gato. Sem nome importante a referir. Era apenas gato. E gato ficou.
Começou por lhe atirar fiambre. Para o telhado do vizinho, imediatamente abaixo do seu. A habitual manta de retalhos onde se espreguiçava feliz ao sol. Ele voltou e ficaram amigos. O único verdadeiro, e ainda vivo.
Havia uma menina que lhe trazia o almoço e a sopa passada, que lhe servia de jantar. Punha a mesa sempre impecável pois nunca sabia quando ia ser a sua última refeição. Uma mesa como aquelas, digna de um rei, de uma celebração, de companhia. Imaculada e esquecida.
Fazia palavras cruzadas, separadas carinhosamente e que vinham na marmita do almoço. O resto do tempo era passado a ver televisão. Programas fúteis, que não gostava; mas que lhe enchiam a casa com pessoas a sério, com barulhos de gente.
Já quase não saia de casa. Uma vez por semana rebocava, a muito custo, o seu carrinho de compras e ia ao mercado à mesma banca dos últimos cinquenta anos. Uma vez por mês à farmácia, onde pedia sempre para ver a tensão. Sempre demasiado baixa, inaudível, quase inexistente.
Um coração que silvava baixinho. Abafado. Em surdina.
Um coração partido há mais de vinte anos já deveria ter parado há mais tempo. Perde fulgor aos poucos. Apaga-se em câmara lenta.
Mais de doze por dia. Rebuçados, chamava-lhes ela. Todo uma multiplicidade de doenças emaranhadas nas outras. Há demasiado tempo.
As mãos, angulares, nodulosas, enraizadas. Dobradas, retorcidas e dependentes com o passar dos anos.
Mexia-se lentamente, ou quase não se mexia. Esquecia-se até de se mexer, por vezes. Movimentos quase encenados, quase teatrais. Numa cadência tão própria, tão particular, tão perpétua.
E as dores. Sempre as dores. Pioravam com a mudança das núvens e cravavam-se-lhe quando havia chuva. Rezava pelo sol. E algum consolo.
O passar dos dias intermináveis. A mudança de sol a luas. A mudança das estações.
Só queria não ter dores por um segundo. Sair da sua casa-casulo cinzenta para a manta de retalhos colorida e apanhar sol. Só por um dia. Ser um gato.
  
(Café Contexto 20/52)

domingo, 10 de maio de 2015

Aquela casa

Aquela casa. Sempre aquela casa vermelha. Sonhei com ela durante anos. Luas seguidas. Noite após noite.
Era uma casa bonita. Lembro-me de ma mostrarem como o maior dos tesouros. Outros tesouros, outros tempos.
Acho que só lá fui uma vez. Duas no máximo. Era miúda. Nem sequer tinha idade para me lembrar de coisa nenhuma. Mas lembrava.
Havia uma casa. E uma mais pequena ainda. Um campo interminável. Currais; um espigueiro. E um forno de pão, bem antigo.
Havia árvores de fruta boa com pêras e maças variadas. Uma outra, metade laranjas, metade tangerinas, invenção de mãos meias trabalhadeiras, meias artistas. Um enorme castanheiro e uma, ou outra figueira. Ameixas e marmelos. Uvas e morangos selvagens. Meios doces, meios amargos. Menta. Sempre houve menta. Aquele cheiro forte e pungente. Fresco, particular.
Lembro-me de correr por entre a erva enorme, há muito tempo.
Fui lá, no outro dia, à casa do sonho. Abandonada, roubada e vandalizada. Já quase nada resta.
As árvores permaneceram. Fantasmas, ainda a darem fruta. Meias caídas, gritam resistência.
Terra demasiado fértil, enriquecida de fruta amadurecida no chão, anos a fio. Fetos e jarros abundantes. Por todo o lado, botões diversos, linhas e agulhas. Há um pássaro caído na cozinha demasiado cansado de tentar descobrir uma saída.
Algo de mim pertencera aquele sítio. Algo ainda pertence.
 
(Café Contexto 19/52)

domingo, 3 de maio de 2015

Lembranças

Era Outono quando te conheci. Apaixonei-me nesse instante. Aquele dia em que caminhavas no parque. Sem estar demasiado frio, e com sol.
Caminhavas pausadamente. Parecias perdida. Perdida em ti mesma, não no caminho. Divagavas nos pensamentos, com ar bem compenetrado. O que será que te passaria pela cabeça naquele instante.
Caminhavas e apanhavas as folhas coloridas que caiam das árvores com o vento. Preferias as grandes, palmas de mão. Enfiaste uma amarela no livro que carregavas naquele dia. Se fosse outro dia, seria outro livro.  Uma folha-marca-página, que ideia mais bonita. 
Dei por mim a querer conhecer-te. A querer saber mais de ti. Do que lias, do que gostavas. Conhecer-te à séria.
Dei por mim a chegar mais cedo ao parque, para ir ver-te. O habitual casaco vermelho que te ficava tão bem  e o enorme cabelo castanho escondido sob ele. Os olhos perscrutantes, grandes e atentos.
Nunca tive coragem de falar contigo. E agora desapareces-te. A rapariga das folhas. Tenho saudades do que mudava em mim quando te via passar. Da ansiedade de acordar, sabendo que te cruzarias comigo nesse dia. Da felicidade de simplesmente existires.
Como migalhas de pão deixadas a marcar o caminho, alimento a pássaros esfaimados. Também às folhas, as leva o vento. Lembranças, levam-nas o vento.
 
 (Café Contexto 18/52)


Fotografia de JPedro Martins