quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Íntimo

Dormindo a nosso lado. Se entrelaça, se confunde. É nosso cheiro, nossa existência.

Dormindo a nosso lado, de respiração solta e imaginários inacessíveis.


O lugar mais íntimo onde, desprotegidos e vulneráveis, sonhamos a sono alto.

O lugar da liberdade extrema, das poesias sem restrições, da expansão das vozes interiores.


Aquele Lugar. Aquele terno, sereno e selvagem lugar. Íntimo. Impartilhável.

(Café Contexto 1/52 de 2022)



domingo, 13 de dezembro de 2015

Ela... Desligou!

Ela... Desligou!
Disse que não carregava mais esta nossa relação.
Foi-se embora, de manhã. Fugiu-se-me perante os dedos, e os lençóis, mesmo antes de eu acordar.
Deixou-me uma nota clara e limpa, reflexo de ideias assentes e decisões já tomadas:
-Não aguento mais. Espero que sejas feliz.

Tentei ligar-lhe. O meu telemóvel morreu e não deu mais sinais de vida. Procurei uma cabina telefónica. Ainda haveria tempo de consertar as coisas. Marquei o seu número com o coração apertado os dedos a tremer. A voz quase que não me saía:
-Ana, desculpa. Volta para casa.

Foi-se embora e não volta. É o que acontece quando te rendes ao comodismo e dás tudo como certo. Esforças-te menos, desleixas-te mais.
A Ana foi-se e não volta. O meu mundo encolheu.

Não vás. Passo a esforçar-me mais...
Não vás. (Gosto tanto de ti.)

(Café Contexto 50/52)

Outros/ELA... desligou!...
Fotografia de JPedro Martins

domingo, 15 de novembro de 2015

Nunca fui religiosa porque nunca soube bem a quem rezava. Sempre senti que não precisava de símbolos, de templos, de orações ensaiadas. Havia sempre algo historicamente contraditório no que me contavam. Algo que me era estranho, que não fazia sentido. Algo que catalogava. Algo que desunia. Actos não pensados, obediência às cegas, extremismos. Separei a religião da espiritualidade já há muito tempo. Porque sempre senti que existia algo mais. Acredito na fé, sim. Ainda acredito na humanidade. Dia-a-dia. Todos os dias. Interessa mesmo baptizar um Deus? Para mim todos somos iguais ao seus olhos, mas diferentes pela maneira como lhe escolhemos rezar. Por que criar assim tantos conflitos? Deus não cria guerras (santas), os homens sim.
 
(Café Contexto 46\52)

domingo, 8 de novembro de 2015

Escuridão

Negrume.
Perda de interesse, baixa autoestima, desencorajamento.  Disforia, inutilidade, tristeza extrema.
Pensamento perturbado, abatimento moral. Pessimismo, irritabilidade.
Fadiga fácil, cansaço constante, prostração física.
Choro. Ansiedade e culpa. Sofrimento e solidão. Sono, entorpecimento...depressão.

(Café contexto 46/52)

domingo, 1 de novembro de 2015

Vento

Era velho, vento, pai. Percorrera os quatro cantos do mundo. Por onde passara, deixara sementes, criara raízes. Filhos, muitos filhos. Um continuar de geração, descendência quase espontânea. Ventinhos arrepiantes, quentes, ardentes, de boas promessas, de bons casamentos.
Educava-os sozinho, de mão bem firme, de palavra bem posta. Com arejos tão atrevidos, necessário andar a toque de caixa. Reguilas, por vezes. De asneiras, bem frequentes. Tão irrequietos, tão agitados, trabalhos dobrados, de filhos já criados. Desconhecendo já, como repreendê-los, enterrava-os nas dunas. Só lhes sobravam os cabelos.


(Café Contexto 44/52)

Fotografia de JPedro Martins

domingo, 25 de outubro de 2015

Linhas

A minha mulher tem o corpo traçado por linhas. Desenhos que a atravessam e cruzam. Afluem numa parte do corpo e desaguam noutra. Parece o mapa, atravessada por cursos de água.
De norte a sul, percorrem-na de Este para Oeste. Transitam por vales e montes. Limites bem definidos de território tão próximo. Vão parando em cruzamentos, encruzilhadas de pele, não tão bem cicatrizadas. Desenhos dinâmicos correntes, desaguam e esmorecem nas pontas.
Às vezes fico a vê-la despir-se devagarinho. Do Minho, ao Guadiana, aqueles subafluentes com origens bem profundas. A beleza que a atravessa, as marcas de que é feita. Todas marcam conquistas. Vitórias, ganhas em solo tão valioso.
Amanhã lá vai ela outra vez. Um novo corte. Ansiedades e promessas de melhoras, e um novo rio a nascer.

(Café Contexto 43/52)

domingo, 11 de outubro de 2015

Árvore

Ser mais árvore. Ramos em vez de braços, raízes em vez de pés. Entrançados de galhos. Cabelos por folhas. Passarinhos.
Subsistir com o básico. Água, comida, suporte forte, onde agarrar. Tronco direito e erguido, à superfície da terra. Pensamentos tranquilos, ideias iluminadas. Corola frondosa. Cada vez mais céu, cada vez mais luz.
Gritar aos céus, em silêncio. Não reagir. Apenas ser. Estar. Permanecer.
Árvore muda, imóvel, imortal. Que não quebra, que não dobra, que não verga. Que resiste às intempéries. Resiliências e serenidades, ao enterrar sub-repticiamente bem, as raízes nas profundezas do próprio ser. Observando o tempo a passar.

(Café Contexto 41/52)

domingo, 20 de setembro de 2015

Rio

Quando eu morrer, sei exactamente para onde quero voltar.
 
O rio.
Saudades do cheiro a terra, e do som da água corrente.
Há um pequeno gorgolejar delicioso, audível se permanecermos em silêncio. Pedras cobertas de limos, com sapos e girinos. Peixes de várias cores e tamanhos. Canas, que vergam e assobiam com o vento. Uma brisa quente vinda do leste, anuncia que vai chover.
As árvores altas e antigas perdem as folhas, uma a uma, delicadamente. Tocam a superfície da água, seguem na corrente. Um espelho de núvens interminável, repete o céu. Uma ave passa.
 
Está próximo. Vejo já Caronte. Contas acertadas já, só me resta mesmo adormecer e não mais acordar.

(Café Contexto 38/52)

Paisagem Natural/O dono do rio
Fotografia de JPedro Martins

domingo, 13 de setembro de 2015

Benvenute

Chegamos a uma casa cheia de gente. Num caos controlado onde tudo se multiplica por 8. Há um cão a lamber-nos as pernas à entrada, que nos diz olá, e nos convida para entrar. Passando as bicicletas, dois lanços de escadas cheios de tralha com abóboras e cebolas, trelas, sapatos e sacos por todo o lado. Há fotografias de família, de férias, de animais e de momentos. Uma montanha de sapatos deixados por todo o lado. Uma colecção de escovas de dentes e outra de toalhas, e uma panóplia de embalagens de tudo, no quarto de banho. Há partituras por todo o lado, e uma ou duas guitarras encostadas a qualquer coisa. Pertences pessoais deixados em qualquer parte. E há livros. Muitos livros. De tudo o que se queira encontrar.
Atrás de uma porta, uma mãe preocupada que gere a casa a partir da cozinha. Há compota ao lume e o perfume é doce. Uma mesa colorida com cadeiras todas diferentes. Armários carregados de objectos bonitos e memórias. Imagens nas paredes com partes do mundo diferentes.
Há recheio para massa fresca na panela, quase pronto.
Arruma-se a mesa. Polvilha-se a farinha, faz-se uma linha de montagem.
Prendadas com um delicioso tortello, tomates de Veneza, parmegiano e prosciutto de Parma, lambrusco tinto do avô, pêssegos que alguém deu, e limoncello feito em casa.
Há um miúdo a fazer asneiras e um pai a repreendê-lo, um rapaz ansioso por saber se entra numa peça de teatro, um jogador de râguebi com um ombro deslocado, uma menina cansada do treino de voleibol e um italiano muito português a contar estórias do teu país.
Conversas em línguas diferentes, partilha e sorrisos.

(Café Contexto 37/52)

domingo, 9 de agosto de 2015

Libelinhas

Tardes de férias.
Águas correntes e libelinhas a esvoaçar.
Nível pelo joelho, peixinhos. Cardumes grandes de peixes pequeninos. Limos e rochas escorregadias. Paus-espadas e troncos-equilíbrios. De sandálias de plástico vistosas, e meias, e mentes abertas. Pedrinhas-tesouro bonitas. Godos que causavam círculos de água, ao atirar. Que alastravam de área, e se iam desfazendo.
Diques. Jangadas. Chapinhares de água, lutas de equipas. Sonoros mergulhos e xixis em qualquer lado. 
Rãs perseguidas, cativas em baldes coloridos. Rochas levantadas em busca de cobras de águas, pretas e escorregadias que lhes enchiam os pesadelos, meses a fio.
Aulas de natação, e de identificação de pássaros. Folhas de todos os feitios e fetos que faziam cócegas nas pernas. Formigas, bichinhos. Mundos à parte, descobertos com carinho. Curiosos, atentos, em alerta. Criativos, em contacto com a Natureza.
Eram os miúdos nus e felizes que brincavam no rio sem preocupações. Garotos pequenos, com mãos e pés pequenos, pouca altura e sonhos grandes.

(Café Contexto 32/52)

domingo, 12 de julho de 2015

Bigodes

Tudo muda com um gato dormindo a nossos pés. Vestido a rigor, de fato preto, colarinho, mangas e meias brancos. Bigodes claros, pinta na ponta da cauda. Elegância em quatro patas.
Dorme profundamente agora. Respira sossegado. Agita-se de quando a quando, atrás de um pardal voando, ou perseguindo uma mosca marota. Enrosca-se, ensonando, tal pescadinha de rabo na boca.
Atravessa-nos os passos, acaricia-nos as pernas. Salta-nos para o colo, rouba-nos a cama. Diverte-se com sacos plásticos, delira com caixas de cartão. Faz barulho quando alguém chega. Mia, conversando, até mais não. Olha o infinito, sonhando ser pássaro. Observa atentamente quem passa. Segue, com os olhos e bigodes tão próprios. As orelhas afiadas, os instintos tão prontos. Limpeza perfeita de língua, asseio extremo, pelagem brilhante. Empurra-me a pedir mimo. Vem encaixar no espaço de sofá que deixo vazio.
Ronrona-me, caro gato, que eu gosto.

(Café Contexto 28/52)

domingo, 5 de julho de 2015

Valente

Papel amarrotado, amachucado, vincado e envelhecido pelo tempo. Estórias, mapas antigos, terrenos acidentados. Com sulcos e saliências profundas. Outras vidas, outros continentes. Notam-se-lhe, quando me aperta a mão. Ele pergunta-me como estou, eu penso em tudo o que ambas já teriam passado.
É Valente de nome, como tinha sido valente de vida. Valente por responder a ordens superiores. Militar de topo. Sem medos, sem hesitações. Um pau mandado, importante, sujeito até a condecorações. Relatos de armas, de mulheres bonitas e de crianças sem pais. De negrura e cores fortes. Uma África antiga, cheia de aromas, calor e mortes.
Noites não dormidas contínuas. De silêncios, ceifados em tempos de guerra. Episódios repetitivos, de fantasmas, de ruídos. Uma casa vazia, enchida de explosões, gritos e espingardas.
Retornou, depois de Abril. Dedicou-se às flores e à horta. Lua e estações, as suas mais verdadeiras amigas. Planta e reproduz uma infinidade de vegetais, de quem fala e estima, com o maior dos carinhos. Pede assim perdão, na terra. Em cada planta nova, um novo ser, sem sangue, mas de seiva corrente.

(Café Contexto 27/52)

domingo, 21 de junho de 2015

Yoga

Inspira. Profundamente. Agora expira. Sente que esvaziaste todo o ar dos teus pulmões. Inspira e expira outra vez. Sentes a calma?
Algo muda quando fazemos yoga pela primeira vez. No corpo e na alma. O corpo estica, a alma torna-se flexível.
É só um corpo, mas é só este que tens. É teu dever cuidar dele. Da melhor forma possível. Ele é o espaço onde a tua alma habita. O espaço onde o teu verdadeiro Eu encontra forma de se expressar e relaccionar com o meio externo.
Há posturas, uma imensidão de esticadelas e torções, que não nos sabíamos capazes e que, pouco a pouco, se tornam vitórias. Ossos, músculos e tendões a trabalharem como um todo. O corpo cede, a pressão dispersa, a ligação corpo-mente estreita-se.
Desliga-se a cabeça. Medita-se. Pensamentos como electricidade. Existem e estão lá, não se vêem, mas sentem-se; domados são úteis, selvagens podem causar mossa. À semelhança de uma qualquer tomada eléctrica, treina-se a capacidade de controlar amplitude e força da corrente. Dar espaço para novas ideias. Dar asas à imaginação. Desligar a ficha. Simples.
Humildade. Maleabilização do ser, e o adquirir de traços de personalidade para a vida.
A relação com o corpo ameniza-se, compreende-se o outro, tratado como igual. Tudo acontece por um motivo, espiritualidade não é religião e a morte é só uma passagem. Paz com o mesmo, com os outros e com o mundo. Não violência. Aceitar tudo como realmente é. Tudo está como devia estar.
Yoga para trabalhar todo o corpo e domesticar a mente. A plenitude como estádio. Aqui e agora. Sempre.
Essa calma é tua. Apodera-te dela.
 
(Café Contexto 25/52)
 
Fotografia de JPedro Martins

domingo, 14 de junho de 2015

Núvens

Podia escrever mil e uma coisas sobre núvens. Núvens mesmo. Algodão. Aglomerado de gotas diminutas, cristais de gelo em suspensão no ar. Acumulações de pó e de possibilidades. Uma multidão de formas, um exército flutuante imenso.
As incertezas que trazia na sua cabeça, e a cabeça que trazia sempre nas núvens. Um nevoeiro denso, sempre presente na sua vida. Cirros, nímbus, de todos os feitios. Sempre formaram um problema. Azares constantes, desilusões, desamores sucessivos. Uma bruma imutável que o impedia de prever e seguir para o futuro.
Passava os dias nuveando para cá e para lá. As decisões importantes sempre adiadas, e as dúvidas, tão presentes, escureciam-lhe o semblante, por vezes. Um dia fechá-las-ia, bem fechadas, bem longe. A cabeça colocaria os pés na terra e o seu coração encher-se-ia de leveza.
(Café Contexto 24/52)

domingo, 7 de junho de 2015

Tranças

Tranças. Toda a nossa vida se esboça no entrançado do teu cabelo.
Passas-lhe os dedos uma, e outra vez. Começando sempre pelas pontas, subindo bem devagar, até ao cocuruto quente.
Teces. Usa-as de todas as formas. Uma atrás, duas presas acima da cabeça, parte presas, parte soltas, apenas um apontamento ou com mechas fugitivas.
Gosto particularmente quando as fazes corridas, uma para cada lado, emoldurando-te o rosto belo.
Até eu já as sei fazer. A de fora, sempre para o meio, uma e outra vez.
Sei que não estás bem quando acordo, e não as vejo já em ti, impecavelmente feitas, o cabelo já domado. Algo te incomoda, ou apoquenta, se não as usas. Se o usas com um rabo-de-cavalo, é porque tens já a cabeça demasiado cheia, demasiado pesada para ostentações.
Desfaço-as, quando me deixas, e esqueço-me sempre como o teu cabelo é bonito. Sempre mais comprido do que aquilo que me recordo. Alvo, ondulado, com um perfume tão próprio. Roubo-to da covinha atrás do pescoço, enquanto dormes, enquanto sonhas.
Um dia, hás-de sentar as nossas filhas em teu colo e aprisionares-lhes os medos, como fazes com os teus. Controlando as inseguranças tuas, em gestos automáticos. Mãos treinadas e sapientes, que acariciam e amordaçam as dúvidas, que não precisas de ter. Mantem-no solto. Não tens de ser sempre forte.

(Café Contexto 23/52)

domingo, 31 de maio de 2015

Herbário

Saí à rua com outros olhos.
São várias. Cada uma em seu pé. Um conjunto. Um jardim. A desfrutar à minha volta.
Pessoas-planta. Mulheres de existência, flor de nome.
Todas precisam de água, alimento e de quem delas trate. Conhecer as necessidades e problemas, tão próprios de cada uma, num desfolhar de conversas. Várias de cores garridas, outras mais sóbrias. Umas mais opulentas, outras mais humildes. De gostos tão diferentes, de perfumes e preocupações tão particulares. Lúcia Margarida Lima, Hera Silva, Yasmin Campos, Jacinta Mariano, Orquídea Maia, Malvina Salgueiro, Maria Liz Nogueira, Floriana Castanho, Rosa Oliveira, Clementina Sobreira.
Senhoras-flor. Colorindo a vizinhança.
Eternizo-as todas no mesmo sítio. Um pequeno herbário. Lindas, cada uma à sua maneira. Todas flora. Etéreas e eternas.

(Café Contexto 22/52)

domingo, 24 de maio de 2015

Melancolia

Café. Chá. Várias chávenas depois. E esta melancolia persiste.
Por vezes chega, e vem para ficar. Pseudo-depressão sem causa específica, sem causa aparente. Falta de entusiasmo, nulidade de vontade, desânimo. Húmores trocados ou, talvez, influência de saturno. Há-de ser dos astros, ou do tempo. Uma núvem negra que paira sobre a cabeça e não dispersa. Nevoeiro de ideias. Anorexia emocional. Humor escurecido. Languidez. Preguiça corporal.
Melancolia. Talvez seja só mais uma experiência enriquecedora da alma.
 
(Café Contexto 21/52)

domingo, 17 de maio de 2015

Retalhos

Havia um gato. Sem nome importante a referir. Era apenas gato. E gato ficou.
Começou por lhe atirar fiambre. Para o telhado do vizinho, imediatamente abaixo do seu. A habitual manta de retalhos onde se espreguiçava feliz ao sol. Ele voltou e ficaram amigos. O único verdadeiro, e ainda vivo.
Havia uma menina que lhe trazia o almoço e a sopa passada, que lhe servia de jantar. Punha a mesa sempre impecável pois nunca sabia quando ia ser a sua última refeição. Uma mesa como aquelas, digna de um rei, de uma celebração, de companhia. Imaculada e esquecida.
Fazia palavras cruzadas, separadas carinhosamente e que vinham na marmita do almoço. O resto do tempo era passado a ver televisão. Programas fúteis, que não gostava; mas que lhe enchiam a casa com pessoas a sério, com barulhos de gente.
Já quase não saia de casa. Uma vez por semana rebocava, a muito custo, o seu carrinho de compras e ia ao mercado à mesma banca dos últimos cinquenta anos. Uma vez por mês à farmácia, onde pedia sempre para ver a tensão. Sempre demasiado baixa, inaudível, quase inexistente.
Um coração que silvava baixinho. Abafado. Em surdina.
Um coração partido há mais de vinte anos já deveria ter parado há mais tempo. Perde fulgor aos poucos. Apaga-se em câmara lenta.
Mais de doze por dia. Rebuçados, chamava-lhes ela. Todo uma multiplicidade de doenças emaranhadas nas outras. Há demasiado tempo.
As mãos, angulares, nodulosas, enraizadas. Dobradas, retorcidas e dependentes com o passar dos anos.
Mexia-se lentamente, ou quase não se mexia. Esquecia-se até de se mexer, por vezes. Movimentos quase encenados, quase teatrais. Numa cadência tão própria, tão particular, tão perpétua.
E as dores. Sempre as dores. Pioravam com a mudança das núvens e cravavam-se-lhe quando havia chuva. Rezava pelo sol. E algum consolo.
O passar dos dias intermináveis. A mudança de sol a luas. A mudança das estações.
Só queria não ter dores por um segundo. Sair da sua casa-casulo cinzenta para a manta de retalhos colorida e apanhar sol. Só por um dia. Ser um gato.
  
(Café Contexto 20/52)

domingo, 10 de maio de 2015

Aquela casa

Aquela casa. Sempre aquela casa vermelha. Sonhei com ela durante anos. Luas seguidas. Noite após noite.
Era uma casa bonita. Lembro-me de ma mostrarem como o maior dos tesouros. Outros tesouros, outros tempos.
Acho que só lá fui uma vez. Duas no máximo. Era miúda. Nem sequer tinha idade para me lembrar de coisa nenhuma. Mas lembrava.
Havia uma casa. E uma mais pequena ainda. Um campo interminável. Currais; um espigueiro. E um forno de pão, bem antigo.
Havia árvores de fruta boa com pêras e maças variadas. Uma outra, metade laranjas, metade tangerinas, invenção de mãos meias trabalhadeiras, meias artistas. Um enorme castanheiro e uma, ou outra figueira. Ameixas e marmelos. Uvas e morangos selvagens. Meios doces, meios amargos. Menta. Sempre houve menta. Aquele cheiro forte e pungente. Fresco, particular.
Lembro-me de correr por entre a erva enorme, há muito tempo.
Fui lá, no outro dia, à casa do sonho. Abandonada, roubada e vandalizada. Já quase nada resta.
As árvores permaneceram. Fantasmas, ainda a darem fruta. Meias caídas, gritam resistência.
Terra demasiado fértil, enriquecida de fruta amadurecida no chão, anos a fio. Fetos e jarros abundantes. Por todo o lado, botões diversos, linhas e agulhas. Há um pássaro caído na cozinha demasiado cansado de tentar descobrir uma saída.
Algo de mim pertencera aquele sítio. Algo ainda pertence.
 
(Café Contexto 19/52)

domingo, 3 de maio de 2015

Lembranças

Era Outono quando te conheci. Apaixonei-me nesse instante. Aquele dia em que caminhavas no parque. Sem estar demasiado frio, e com sol.
Caminhavas pausadamente. Parecias perdida. Perdida em ti mesma, não no caminho. Divagavas nos pensamentos, com ar bem compenetrado. O que será que te passaria pela cabeça naquele instante.
Caminhavas e apanhavas as folhas coloridas que caiam das árvores com o vento. Preferias as grandes, palmas de mão. Enfiaste uma amarela no livro que carregavas naquele dia. Se fosse outro dia, seria outro livro.  Uma folha-marca-página, que ideia mais bonita. 
Dei por mim a querer conhecer-te. A querer saber mais de ti. Do que lias, do que gostavas. Conhecer-te à séria.
Dei por mim a chegar mais cedo ao parque, para ir ver-te. O habitual casaco vermelho que te ficava tão bem  e o enorme cabelo castanho escondido sob ele. Os olhos perscrutantes, grandes e atentos.
Nunca tive coragem de falar contigo. E agora desapareces-te. A rapariga das folhas. Tenho saudades do que mudava em mim quando te via passar. Da ansiedade de acordar, sabendo que te cruzarias comigo nesse dia. Da felicidade de simplesmente existires.
Como migalhas de pão deixadas a marcar o caminho, alimento a pássaros esfaimados. Também às folhas, as leva o vento. Lembranças, levam-nas o vento.
 
 (Café Contexto 18/52)


Fotografia de JPedro Martins
 

domingo, 26 de abril de 2015

Planisfério

Quanto de mim não cabe na tua pele. E se estes lençóis falassem, teriam mil histórias a contar. Quanto de nós já por eles passou. Quanto de nós se criou entre eles. Tu fizeste-me e eu a ti. Fomo-nos esboçando. Desenhar de personalidade, moldada e marcada nos vincos da nossa cama. Mapa de sonhos, planisfério de vida. Todas as palavras, lágrimas e suores trocados no oceano profundo de amores. Projecções de mil luas no teu corpo nu. O teu toque quente. Os teus braços, envolvendo-me. Eu, a dormir no teu peito, escutando, o que me pertence.
O passar do tempo.
Ver-te adormecer dia após dia. E dormires, indefesa e tranquila, ao meu lado. Todos os acordares em conjunto. A luz do teu sorriso numa qualquer manhã.
Todos os instantes que passamos juntos. Os teus pés sempre descalços, livres calcorreadores de estradas e dos vastos caminhos dos meus pensamentos.
Tu, metade de mim. Volta rápido. Fazes-me falta.
O espaço vazio entre os lençóis espera-te. Brancos e imaculados como sempre.
  
(Café Contexto 17/52)

Fotografia de JPedro Martins

 

domingo, 19 de abril de 2015

Espera

‘’Somos feitos da mesma matéria que os sonhos.’’
 

Um acordar prematuro. Uma travessia de cidade a pé acelerado. Um cruzamento com dez mil atletas correndo, desenfreadamente. Um metro, um comboio, um eléctrico e um autocarro depois. Trinta e cinco minutos de caminho duvidoso a mais. Uma paragem num descampado no meio do nada. Uma caminhada silenciosa para um aeroporto no meio de nenhures.
Um par de horas a aguardar, inactividade total de tráfico aéreo. Num verde imenso, num minúsculo aeródromo com mais pássaros que máquinas voadoras.
Pessoas tão fisicamente diferentes, quanto as nacionalidades. Uma língua invariável. Uma espera, uma fila. Dissertação.
Descontraidamente sentada. Aproveitando o balanço coerente e regular da viagem. O que acontece quando estamos demasiado confortáveis no percurso que traçamos? Aquele que damos como certo? Estamos bem, a vida desliza aos nossos olhos. Neste instante. Neste mesmo instante. Estaremos nós exactamente no sítio onde é suposto estarmos? Esse apreciar da paisagem. Não nos afasta ou desvia o olhar da outra viagem que deveríamos estar a realizar, neste momento? Serão só comodidades? Falsos positivos. Falsos felizes.
Porque ficamos tão ansiosos com a mudança? Porque nos é ela tão intrinsecamente anormal. Tememos o desconhecido. Faz-nos confusão o estranho, o que ainda há de vir. O que são então os sonhos e de onde vêm? Estão presos ao aqui e agora? Ou completamente distintos? Vivem sozinhos? Ânsias, desejos ocultos, vontades escondidas. Como um papagaio de papel de tonalidades garridas. Bem longe, com um fio bem comprido. Preso a nós por uma ligação bem fininha. Puxamos. Com jeito. Bem lentamente. Para que uma rajada de vento não nos faça largar mão. À medida que enrolamos a corda, vão ficando cada vez mais claros. Menos distantes, menos difusos. Menos ilusão, menos desilusão. Coloridas eventualidades de sonhos bonitos.
Nem todos os dias se conseguem pôr estrelas de papel de seda a voar. Espera-se a melhor hora, o melhor momento, a ausência de chuva. Com vento certo e sol quente, as inquietações passam a certezas, as possibilidades passam a infinitas. Basta aguardar o tempo perfeito.
 
(Café Contexto 16/52)

domingo, 12 de abril de 2015

Manual de Intruções

Para si, indivíduo masculino a ler este texto. Apague já todas as réstias de esperança face ao título da peça. Não há manual. Não há instruções. Só mulheres. Complicadas, por sinal.

Somos deusas antigas, musas, o sagrado feminismo. Vinte e oito dias de ciclo menstrual, vinte e oito dias de ciclo lunar. Subjugadas ao poder da mãe lua, que move rios, que mexe marés, que nos dificulta a vida, nalguma mais particular altura do mês. De natureza mutável, e instintos audazes, auspiciosas e alegres num segundo, deprimidas e melancólicas em instantes fugazes. Apaixonantes, sensíveis e com necessidade de acolher, numa miscelânea de hormonas, decisões e emoções. Somos muito difíceis de lidar, impossíveis de compreender.
Nunca sabemos realmente o que queremos. O que não queremos, como queremos, onde queremos, ou se ainda queremos. Não tem a ver com o querer em si, mas com um sentimento de indecisão constante que toma parte de nós. Que se entranha nas nossas decisões, que nos ofusca os desejos.
Porque as outras são mais magras, mais gordas, com melhores mamas, melhores rabos. Maiores cabelos, maiores pestanas. menos pês, menos pêlos.
A concorrência é feroz, as comparações inevitáveis.
O que queremos então, pergunta-se?
Queremos um parceiro honesto, sincero, sensível. Que partilhe a sua alma, que se preocupe, que se dê. Alguém responsável e louco. Que nos divirta, que nos faça chorar de tanto rir. Alguém que comunique e não se feche em si próprio. Alguém espontâneo e sem pudor. Alguém sem medo, destemido. Mais que um marido, um amigo.
Queremos um homem que não ligue a celulites, a gordurinhas ou a pregas. Que nos diga que temos a barriga saída mais sensual de sempre, que estrias são experiências de vida, que nos lembram o que já fomos. Curvas são precisas, para terem por onde agarrar. Pernas levam-nos onde queremos e que Deus escreve direito por linhas curvilíneas.
Queremos que nos digam que estamos bonitas. Quando perguntamos, quando não perguntamos, a toda a hora.
Que o espelho reprovador está certo, os nossos olhos é que estão errados.
Que qualquer um dos vestidos que temos em mão e pelo quais não conseguimos optar nos fica a matar. E que o terceiro, que acabamos por escolher, é o certo.
Que amarelo também é cor. Que nos dá luz, que nos fica bem à cara.
Que sapatilhas são tão interessantes a um homem, quanto saltos agulha vertiginosos e matadores.
Que maquilhagem é supérflua. Mas um batom vermelho é sempre um batom vermelho.
Que somos deslumbrantes quando temos o cabelo desgrenhado, as mesmas calças de ganga de sempre e uma qualquer t-shirt que tenha aparecido primeiro.
Que somos sexys a toda a hora. Até em tarefas mais mundanas.
Queremos um homem que cozinhe por nós e para nós. Que estenda a roupa ou deite os miúdos, quando chegamos, após um interminável dia, estouradas a casa.
Queremos um homem que nos mostre amor publicamente. Um entrelaçar de mãos, um beijo roubado, lábios tocados de cumprimento em frente de um público não escolhido.
Alguém que nos dê carinho, nos ame, nos cuide. Que mexa connosco, nos mude. Alguém com defeitos mais interessantes que virtudes. Alguém que erre, alguém que tente. Um homem quente, um homem ardente.
Alguém com quem partilhar o sono, os sonhos e os lençóis. Partilhar uma vida, melhorar o melhor de nós.

Esqueça todas as instruções acima descritas. Apague tudo da sua memória. Apreenda tudo de novo. Todas nós somos diferentes. Esqueça o manual. Apanhe-nos desprevenidas. Surpreenda-nos. Experimente devagarinho. Experimente com cautela. Atente à lua. Paciência e muito amor bastam.

(Café Contexto 15/52)

domingo, 5 de abril de 2015

Mazurka

Costas, postura, centro.
Mãos, toque, palmas, conexão.
Pontas dos pés, calcanhares, raízes.
Par, igual, semelhante.
Baile. Danças, giros, rodopios, ondulações. Tremeres. Vacilares.
Simetrias, padrões, mandalas. Partilhas.
Respiração. Escuta. Pulsação. Desaparecimento do espaço em redor. Instantes suspensos.
O aproveitar do momento, desconhecendo o andamento que se lhe segue.
-A menina dança?

(Café Contexto 14/52)

domingo, 29 de março de 2015

Abelha-mestra

Sempre fomos mais que muitos. Muitos é relativo numa família grande como a minha. Filhos, netos. Sangue igual de cabelos e olhos claros. O humor do mar reflecte-se nas variações da íris dos nossos olhos. Todos temos água em nós. Dependendo da cor do céu e do seu reflexo em nossos mirantes. Os cabelos, quase sempre louros, escurecem com o tempo mas nunca deixam de o ser.
Passávamos as tardes juntos. Sempre. Repetidamente. Durante anos, aquela casa no rio.
Almoçávamos apertados na mesa branca da cozinha. Antiga e gravada com riscos únicos cheios de estórias. Ao início da tarde, víamos séries americanas de aventura onde os bons venciam sempre os maus. Vibrávamos.
Brincávamos às mercearias na despensa. E às modistas com o guarda-fatos da avó.
Jogávamos ping-pong na mesa da sala com rede feita de caixas de chocolate já antigas.
Fazíamos competições de torres de bolacha maria e manteiga:
-Quantas consegues por tu na boca?
Do saltar à corda e do macaquinho do chinês à macaca, passávamos por todos os jogos tradicionais. Víamos quem saltava mais alto ao elástico. Passávamos horas a desenhar no chão, com restos de giz, que tirávamos do bolso do casaco do avô. Mudávamos a lenha de sítio para fazer trajectos. Usávamos os cestos para nos enfiarmos dentro e transportarmos os cães.
O terraço era o nosso mundo. As possibilidades infinitas.
Brincávamos com a liberdade que antes não havia e agora já não sabem haver. Fazíamos asneiras. Uma seita tão grande que dava para uma equipa de futebol. Fazíamos trinta por uma linha e éramos felizes.
Via os meus primos crescerem, passarem de ano, irem para a escola dos grandes, vestirem bata nas aulas. Achava que eles estavam crescidos e que eu nunca iria ser assim. Iria continuar a ser sempre eu. A pequenina.
Eu. A criança intermédia. A entre gerações. A mais nova dos mais velhos e a mais velha dos mais novos.
Eu. A que tive mais sorte, possivelmente. A que no meio de tantos primos, passava mais tempo com a avó. A avó, abelha-mestra da família. A abelha principal, suporte de toda a colmeia. Era doutorada em palavras cruzadas. Fazia-as ininterruptamente. Não falhava uma.
Passávamos as tardes em canções e adivinhas. A minha avó, entre os pratos e os talheres que lavava, desafiava-me com mais uma:
-Qual é a coisa, qual é ela…
Eu adorava. A avó era mágica, tinha sempre algo para ensinar. Adorava animais. Havia sempre espaço para mais uma história.
O fogão de lenha sempre aceso e as achas a crepitar que nunca chegaram a ser barcos.
O cheiro a madeira sempre presente e o barulho da serra do estaleiro a trabalhar mais um dia. 
-Vó, fazes leite creme para mim?
Não sei do que gostava mais. Se do sabor, se do fumo que se formava quando a avó pegava naquele ferro, em que eu não podia mexer, e queimava o doce. Era amor.
Comíamos trigos com planta que eu ia buscar, sozinha, à mercearia atrás de casa. Enquanto a avó ficava com o coração nas mãos enquanto eu não chegava:
-Toma, leva esta moeda, e traz uma chicla para ti.
Punha-me açúcar no leite quente, que nunca gostei. Mas bebia, porque tinha sido a avó. Adorava tirar cascas secas às cebolas para a avó ralhar comigo:
-Pára de fazer isso rapariga, que dás cabo das cebolas! Toma um lápis, faz um desenho, que isso fazes bem! Abria a habitual gaveta do tem-tudo e sacava dum bloco.
Ela costurava qualquer coisa enquanto trauteava melodias ou rezas antigas.
Habitávamos aquele espaço e o rio continuava a passar.
O simples e o quotidiano chegavam.
A vida, pela porta da cozinha.

(Café Contexto 13/52)

 

domingo, 22 de março de 2015

Super-Heróis

Sim, existem. Pelo menos para mim.

Uniforme colante e maquilhagem, roupa justa, de cores garridas pontualmente.
Vigor sobre-humano. Levantamento de pesos bem alto. Força insuperável. Destreza. Treino. Proezas físicas, ginásticas, superpoderes. Um corpo com este músculo, só podia ser de super-mulher. Semideusa, heroína, metade humana e metade divina.
Altruísta e nobre. Brava, intrépida e valente. Olhar sempre atento, olhar sempre sorridente.
Diferencia bem, o bem e o mal. Defende, com unhas e dentes, a justiça e a liberdade das gentes. Apazigua, dá tréguas, acalma. A todos aqueles que a rodeiam, a todos aqueles que dela gostam. Mantem a ordem, move montanhas, dou do meu, faz-se a mais, arranja-se um jeito. Se é por um amigo, o mundo há de ser perfeito. Impecável gestão do tempo, vida quase dupla. Num turbilhão de afazeres, de fora, ninguém fica. Boas acções e aventuras são coisas que a esperam, entretanto fica por cá, a inspirar pessoas.

(Café Contexto 12/52)

domingo, 15 de março de 2015

Pai - Semente

Da mãe terra, do pai semente.


Una, única célula, uma vida própria, dividendos. Multiplicação desenfreadada, natureza desmedida, num ainda quase gente, num ainda quase nada.
Da radícula cérebro, da gémula pulmão. Um embrião completo, de cotilédones coração.
Com a semente capa, tegumento. Braços de pai que apertam e protegem, dando sempre espaço, dando sempre alento.
Braços e pés palmados, digitados, iguais aos teus. Traços ténues, cores diferentes, não do teu lado, talvez da mãe.
De temperamento persistente e mau humor caduco, ideias agitadas, sagitadas, muito próprias.
Uma plântula saída do negrume para ver a luz pela primeira vez, um primeiro filho dá à luz um pai, que o fez.
Uma qualquer planta que cresce em direcção aos céus, fazes-me chegar cada vez mais alto. Sempre pela mão, sempre por meus próprios pés. Querer mais, ser mais, ter o céu pelo limite. Esperar a altura certa, escutar o próprio ritmo. Raízes que agarram sem prender de mais. Folhas abertas a novas aventuras, novos ideais.
Da Natureza, uma semente a uma planta folheada. Xilema, fluema, todo um organismo em veios comunicantes. Feito de matéria viva, seiva corrente. De clorofila a sangue, sépalas de toda uma nova geração. Não nove meses na barriga, mas nove, já no coração.

(Café Contexto 11/52)

domingo, 8 de março de 2015

Laços

Somos laços. De beijos e amassos, acasos.

De igual desenho, de igual figura. A mesma norma, a mesma forma. Repetições de molde, silhueta. Igual estatura, igual andar. Pernas iguais, fácil muscular.
Mãos trabalhadoras e braços fortes, que abraçam e consolam quando faltam as sortes.
Femininas e poderosas, intuição forte, instinto astuto. Do mesmo clã, da mesma gente; do mesmo veio, do mesmo sangue quente. Mulheres de mesmo peito, mesmo jeito, mesmo gesto. Olhos brilhantes, olhar atento. Variações de cores sobre um quase mesmo aspecto.
Olfacto apurado e muito ouvido. Inteligência emocional, sexto sentido. Leitura de mentes, partilhas. Vínculos, cumplicidades de uma mesma família. Da mesma espécie, batalhão, colmeia. Assunto que dava conversa da lua nova à lua cheia.

(Café Contexto 10/52)

domingo, 1 de março de 2015

Sono

Sono. Suspensão da consciência voluntária e moderação das percepções sensoriais. Parar de mente. Vigília de parte. Baixar de braços. Baixar de armas. Dar de si. Relaxamento. Descanso. Puro prazer da sesta. Aconchego abençoado e reparador numa tarde abençoada de sofá.
Hipnos acompanha-me e sou levada em braços por Morfeu.
Som na rua. Os olhos abrem-se. Morfeu envolve-me calmamente com o seu cobertor de estrelas e os sonhos continuam.

(Café Contexto 9/52)

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Azul

Vinte centímetros. Vinte centímetros, apenas. A amplitude do meu mundo reside em vinte centímetros. Para lá, tudo é uma névoa difusa. Um ambiente de nevoeiro e de sombras. Os contornos inexistentes. As linhas inexpressivas. Um borrão de tintas. Pinturas a aguarela.
Distâncias. Céu, estrelas, aviões, horizonte. Tudo enublado para lá dos vinte.
Um mundo subaquático e insípido.
Amarrar alguém. Os olhos mais iguais aos azuis morreram já quase cegos, dependentes de outros castanhos. Sujeição. Os meus não se prendem com dioptrias, mas com a indolência de um nervo. Não sou invisual, e sou grata por isso, mas condiciona-me. Não me reconheço ao espelho porque os meus olhos não chegam lá. Não me lembro dos joelhos e acho que não tenho dedos dos pés.  Quando os olhos falham, o foco passa naturalmente ao próximo. Como não observo, observo-me. Direcciono-me ao já apreendido, ao já confortável, ao já em mente. Alma gentil por vezes. Devaneios frequentes. Intelecto complicado. De evitar andar sem ajudas oculares, pois o meu pensamento é bem menos concreto do que o abstrato do real.

(Café Contexto 7/52)

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Patins

Aprendi a andar de patins há quase tanto tempo do que quanto aprendi a caminhar. A dar os primeiros deslizes tão naturalmente como os primeiros passos. Contrariando a lógica normal das coisas, só muito depois me equilibrei numa bicicleta. Era difícil andar numa só pista. Parecia que não fazia sentido. Os patins sempre foram melhores amigos. Memórias boas de momentos bem passados. Cheiro a borracha e sons característicos. Curvas, serpenteios, equilíbrios e hesitações. Derrapagens, voltas, circuitos e viragens, escorregadelas e trambolhões. Na vida, tudo deveria ser como aprender a patinar. Ensinarem-nos primeiro a cair e a levantar, a pormo-nos de pé devagarinho, para não escorregar novamente. Só depois avançar, nunca baixando os braços, olhando sempre para a frente. Cautelosamente, mas aproveitando o momento.

Conversas boas. A vontade de fazer algo com tão queridas recordações.
Fim-de-tarde. Frio cortante. No conforto do habitual vento desconfortável. O deslizar pausado e prazeroso, que nunca se esquece. Felicidade nas mais pequenas coisas.

(Café Contexto 6/52)

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Caminhava sozinho. Os seus passos tocavam as paredes do túnel, que lhe retribuíam.
Num qualquer túnel. Sem interesse da hora ou do dia. Quando se está preso, deixa de haver diferenças. Os dias são iguais. Os dias são só dias.
Vida, linha contínua imparável. Estados estacionários proibidos. Mais importante que a partida ou a chegada, o sorver da passagem.
Caminhava sozinho não solitariamente. Só apenas. Não por opção.
Não se manifestava, retendo tudo para si. Dois olhos e dois ouvidos, com uma só boca, muito mais devemos apreender do mundo em geral do que expressar uma opinião.
Deixar-se ir. Não falar. Não contestar. Seguir em frente. Não hesitar. Não olhar para trás.
Cinzentos, os dias iguais. Afazeres pendentes, que não interessavam pois no seu silêncio, o ruído dos seus pensamentos tornava-se ensurdecedor

(Café Contexto 5/52)


Fotografia de JPedro Martins

domingo, 25 de janeiro de 2015

Tosse

Há tosse cavernosa, tosse seca e tosse molhada. Tosse de cão, de elefante e até gatinhos. Tosse alérgica e do pó. Do ar condicionado. Da que vem aqui de trás, da funda e da curta. Tosse grande e tosse pequenina. Tosse com humidade. Tosse que não sai. Tosse de reflexo e de refluxo. Tosse de farfalheira, pieira e estridor. Tosse rouca, grave e com gravidade. Tosse aspirativa e aflita. Tosse de engasgo. Tosse crónica e persistente. Aguda e subaguda. Produtiva ou não. Um ligeiro aclarar de garganta. Tosse educativa, a mais ouvida nestes dias.
Para todas elas, sustenha a respiração e espere não ficar contaminado.

(Café Contexto 4/52)

domingo, 18 de janeiro de 2015

Maria

Era Maria de nome, como tantas outras. Um nome corrente, usual. Vulgar, como não era a Maria em questão. Um nome não faz a pessoa. Todas as Marias são diferentes. Há Marias de tudo e para todos. Maria é um nome bonito. Mas esta não era só Maria. Tinha também nome de rapaz. Contrariando as probabilidades, de Maria-Rapaz não tinha nada. Longo cabelo escuro e tez caramelizada. Curvas novas bem definidas. Senhoril e sempre bem apresentada. Abundava em si a frescura de alguém que tem a vida toda pela frente.
Podia ter sido jornalista ou enfermeira. Alto poder de observação. Ouvido mais que preparado. Sentido crítico apurado e língua afiada. Sempre informada, sempre em cima do acontecimento. Defensora dos oprimidos. Mãe adoptiva de todos os pequenos. Arisca, bem atinada. Coração grande, cheio de emoções fortes e aventuras ainda por viver. Era Maria. Mas Maria nunca foi só Maria. Trazia em si todos os sonhos deste mundo.
(Café Contexto 3/52)

domingo, 11 de janeiro de 2015

Andorinhas

Os meus amigos voaram para longe. São andorinhas. Estão em locais distantes a maior parte do ano. Abriram mão de um país e abriram asas a outros. Foram. Tiveram essa coragem. Portugueses novos, livres, mas obrigados a sair de casa. Uma nação disforme e injusta.
São andorinhas. Só as temos de vez em quando. Foram uma a uma. Cada qual na sua vez. Tantas, que se perdem os dedos. Mandam bicadas e notícias de vez em quando. Fazem novos ninhos longe, numa casa mais acolhedora e quente. Voltam no Verão e no Natal, quando a saudade bate forte no peito. Estando cá, dividem-se. Multiplicam-se por todos os beirais, verificando se tudo está como era previamente. As Primaveras são sempre diferentes. Antes de irem, trejeiteiam o céu preocupadas mas felizes ao final da tarde, quando o sol quase se põe e menos um dia falta para apartarem.
Nós, os que ficamos por cá, ansiamos pela passagem do tempo. Pela passagem das estações. Pelo sorriso do sol. Pelo calor dos amigos. Deliramos. Achamos que sentimos um bater de asas. Que ouvimos gargalhadas. Esperamos que o vento mude, e os traga de volta. Com o coração apertado e nostálgico.
Nós, os que ficamos por cá. Com a coragem de ficar.

(Café Contexto 2/52)
 

Lógica

Escrevo porque me dá um distanciamento das situações. Faz-me ver a vida por outros olhos. Como quem observa de longe, e analisa assim o que se passa. Deste modo, consigo pensar logicamente. As emoções ficam de lado, não distorcendo a razão. O nevoeiro desaparece, e tudo se torna mais nítido.

(Café Contexto 1/52)