Sempre fomos mais que muitos. Muitos é relativo numa família
grande como a minha. Filhos, netos. Sangue igual de cabelos e olhos claros. O
humor do mar reflecte-se nas variações da íris dos nossos olhos. Todos temos
água em nós. Dependendo da cor do céu e do seu reflexo em nossos mirantes. Os
cabelos, quase sempre louros, escurecem com o tempo mas nunca deixam de o ser.
Passávamos as tardes juntos. Sempre. Repetidamente. Durante
anos, aquela casa no rio.
Almoçávamos apertados na mesa branca da cozinha. Antiga e
gravada com riscos únicos cheios de estórias. Ao início da tarde, víamos séries
americanas de aventura onde os bons venciam sempre os maus. Vibrávamos.
Brincávamos às mercearias na despensa. E às modistas com o
guarda-fatos da avó.
Jogávamos ping-pong na mesa da sala com rede feita de caixas
de chocolate já antigas.
Fazíamos competições de torres de bolacha maria e manteiga:
-Quantas consegues por tu na boca?
Do saltar à corda e do macaquinho do chinês à macaca,
passávamos por todos os jogos tradicionais. Víamos quem saltava mais alto ao
elástico. Passávamos horas a desenhar no chão, com restos de giz, que tirávamos
do bolso do casaco do avô. Mudávamos a lenha de sítio para fazer trajectos.
Usávamos os cestos para nos enfiarmos dentro e transportarmos os cães.
O terraço era o nosso mundo. As possibilidades infinitas.
Brincávamos com a liberdade que antes não havia e agora já
não sabem haver. Fazíamos asneiras. Uma seita tão grande que dava para uma
equipa de futebol. Fazíamos trinta por uma linha e éramos felizes.
Via os meus primos crescerem, passarem de ano, irem para a
escola dos grandes, vestirem bata nas aulas. Achava que eles estavam crescidos
e que eu nunca iria ser assim. Iria continuar a ser sempre eu. A pequenina.
Eu. A criança intermédia. A entre gerações. A mais nova dos
mais velhos e a mais velha dos mais novos.
Eu. A que tive mais sorte, possivelmente. A que no meio de
tantos primos, passava mais tempo com a avó. A avó, abelha-mestra da família. A
abelha principal, suporte de toda a colmeia. Era doutorada em palavras
cruzadas. Fazia-as ininterruptamente. Não falhava uma.
Passávamos as tardes em canções e adivinhas. A minha avó,
entre os pratos e os talheres que lavava, desafiava-me com mais uma:
-Qual é a coisa, qual é ela…
Eu adorava. A avó era mágica, tinha sempre algo para
ensinar. Adorava animais. Havia sempre espaço para mais uma história.
O fogão de lenha sempre aceso e as achas a crepitar que
nunca chegaram a ser barcos.
O cheiro a madeira sempre presente e o barulho da serra do
estaleiro a trabalhar mais um dia.
-Vó, fazes leite creme para mim?
Não sei do que gostava mais. Se do sabor, se do fumo que se
formava quando a avó pegava naquele ferro, em que eu não podia mexer, e
queimava o doce. Era amor.
Comíamos trigos com planta que eu ia buscar, sozinha, à
mercearia atrás de casa. Enquanto a avó ficava com o coração nas mãos enquanto
eu não chegava:
-Toma, leva esta moeda, e traz uma chicla para ti.
Punha-me açúcar no leite quente, que nunca gostei. Mas
bebia, porque tinha sido a avó. Adorava tirar cascas secas às cebolas para a
avó ralhar comigo:
-Pára de fazer isso rapariga, que dás cabo das cebolas! Toma
um lápis, faz um desenho, que isso fazes bem! Abria a habitual gaveta do
tem-tudo e sacava dum bloco.
Ela costurava qualquer coisa enquanto trauteava melodias ou
rezas antigas.
Habitávamos aquele espaço e o rio continuava a passar.
O simples e o quotidiano chegavam.
A vida, pela porta da cozinha.
(Café Contexto 13/52)