domingo, 29 de março de 2015

Abelha-mestra

Sempre fomos mais que muitos. Muitos é relativo numa família grande como a minha. Filhos, netos. Sangue igual de cabelos e olhos claros. O humor do mar reflecte-se nas variações da íris dos nossos olhos. Todos temos água em nós. Dependendo da cor do céu e do seu reflexo em nossos mirantes. Os cabelos, quase sempre louros, escurecem com o tempo mas nunca deixam de o ser.
Passávamos as tardes juntos. Sempre. Repetidamente. Durante anos, aquela casa no rio.
Almoçávamos apertados na mesa branca da cozinha. Antiga e gravada com riscos únicos cheios de estórias. Ao início da tarde, víamos séries americanas de aventura onde os bons venciam sempre os maus. Vibrávamos.
Brincávamos às mercearias na despensa. E às modistas com o guarda-fatos da avó.
Jogávamos ping-pong na mesa da sala com rede feita de caixas de chocolate já antigas.
Fazíamos competições de torres de bolacha maria e manteiga:
-Quantas consegues por tu na boca?
Do saltar à corda e do macaquinho do chinês à macaca, passávamos por todos os jogos tradicionais. Víamos quem saltava mais alto ao elástico. Passávamos horas a desenhar no chão, com restos de giz, que tirávamos do bolso do casaco do avô. Mudávamos a lenha de sítio para fazer trajectos. Usávamos os cestos para nos enfiarmos dentro e transportarmos os cães.
O terraço era o nosso mundo. As possibilidades infinitas.
Brincávamos com a liberdade que antes não havia e agora já não sabem haver. Fazíamos asneiras. Uma seita tão grande que dava para uma equipa de futebol. Fazíamos trinta por uma linha e éramos felizes.
Via os meus primos crescerem, passarem de ano, irem para a escola dos grandes, vestirem bata nas aulas. Achava que eles estavam crescidos e que eu nunca iria ser assim. Iria continuar a ser sempre eu. A pequenina.
Eu. A criança intermédia. A entre gerações. A mais nova dos mais velhos e a mais velha dos mais novos.
Eu. A que tive mais sorte, possivelmente. A que no meio de tantos primos, passava mais tempo com a avó. A avó, abelha-mestra da família. A abelha principal, suporte de toda a colmeia. Era doutorada em palavras cruzadas. Fazia-as ininterruptamente. Não falhava uma.
Passávamos as tardes em canções e adivinhas. A minha avó, entre os pratos e os talheres que lavava, desafiava-me com mais uma:
-Qual é a coisa, qual é ela…
Eu adorava. A avó era mágica, tinha sempre algo para ensinar. Adorava animais. Havia sempre espaço para mais uma história.
O fogão de lenha sempre aceso e as achas a crepitar que nunca chegaram a ser barcos.
O cheiro a madeira sempre presente e o barulho da serra do estaleiro a trabalhar mais um dia. 
-Vó, fazes leite creme para mim?
Não sei do que gostava mais. Se do sabor, se do fumo que se formava quando a avó pegava naquele ferro, em que eu não podia mexer, e queimava o doce. Era amor.
Comíamos trigos com planta que eu ia buscar, sozinha, à mercearia atrás de casa. Enquanto a avó ficava com o coração nas mãos enquanto eu não chegava:
-Toma, leva esta moeda, e traz uma chicla para ti.
Punha-me açúcar no leite quente, que nunca gostei. Mas bebia, porque tinha sido a avó. Adorava tirar cascas secas às cebolas para a avó ralhar comigo:
-Pára de fazer isso rapariga, que dás cabo das cebolas! Toma um lápis, faz um desenho, que isso fazes bem! Abria a habitual gaveta do tem-tudo e sacava dum bloco.
Ela costurava qualquer coisa enquanto trauteava melodias ou rezas antigas.
Habitávamos aquele espaço e o rio continuava a passar.
O simples e o quotidiano chegavam.
A vida, pela porta da cozinha.

(Café Contexto 13/52)

 

domingo, 22 de março de 2015

Super-Heróis

Sim, existem. Pelo menos para mim.

Uniforme colante e maquilhagem, roupa justa, de cores garridas pontualmente.
Vigor sobre-humano. Levantamento de pesos bem alto. Força insuperável. Destreza. Treino. Proezas físicas, ginásticas, superpoderes. Um corpo com este músculo, só podia ser de super-mulher. Semideusa, heroína, metade humana e metade divina.
Altruísta e nobre. Brava, intrépida e valente. Olhar sempre atento, olhar sempre sorridente.
Diferencia bem, o bem e o mal. Defende, com unhas e dentes, a justiça e a liberdade das gentes. Apazigua, dá tréguas, acalma. A todos aqueles que a rodeiam, a todos aqueles que dela gostam. Mantem a ordem, move montanhas, dou do meu, faz-se a mais, arranja-se um jeito. Se é por um amigo, o mundo há de ser perfeito. Impecável gestão do tempo, vida quase dupla. Num turbilhão de afazeres, de fora, ninguém fica. Boas acções e aventuras são coisas que a esperam, entretanto fica por cá, a inspirar pessoas.

(Café Contexto 12/52)

domingo, 15 de março de 2015

Pai - Semente

Da mãe terra, do pai semente.


Una, única célula, uma vida própria, dividendos. Multiplicação desenfreadada, natureza desmedida, num ainda quase gente, num ainda quase nada.
Da radícula cérebro, da gémula pulmão. Um embrião completo, de cotilédones coração.
Com a semente capa, tegumento. Braços de pai que apertam e protegem, dando sempre espaço, dando sempre alento.
Braços e pés palmados, digitados, iguais aos teus. Traços ténues, cores diferentes, não do teu lado, talvez da mãe.
De temperamento persistente e mau humor caduco, ideias agitadas, sagitadas, muito próprias.
Uma plântula saída do negrume para ver a luz pela primeira vez, um primeiro filho dá à luz um pai, que o fez.
Uma qualquer planta que cresce em direcção aos céus, fazes-me chegar cada vez mais alto. Sempre pela mão, sempre por meus próprios pés. Querer mais, ser mais, ter o céu pelo limite. Esperar a altura certa, escutar o próprio ritmo. Raízes que agarram sem prender de mais. Folhas abertas a novas aventuras, novos ideais.
Da Natureza, uma semente a uma planta folheada. Xilema, fluema, todo um organismo em veios comunicantes. Feito de matéria viva, seiva corrente. De clorofila a sangue, sépalas de toda uma nova geração. Não nove meses na barriga, mas nove, já no coração.

(Café Contexto 11/52)

domingo, 8 de março de 2015

Laços

Somos laços. De beijos e amassos, acasos.

De igual desenho, de igual figura. A mesma norma, a mesma forma. Repetições de molde, silhueta. Igual estatura, igual andar. Pernas iguais, fácil muscular.
Mãos trabalhadoras e braços fortes, que abraçam e consolam quando faltam as sortes.
Femininas e poderosas, intuição forte, instinto astuto. Do mesmo clã, da mesma gente; do mesmo veio, do mesmo sangue quente. Mulheres de mesmo peito, mesmo jeito, mesmo gesto. Olhos brilhantes, olhar atento. Variações de cores sobre um quase mesmo aspecto.
Olfacto apurado e muito ouvido. Inteligência emocional, sexto sentido. Leitura de mentes, partilhas. Vínculos, cumplicidades de uma mesma família. Da mesma espécie, batalhão, colmeia. Assunto que dava conversa da lua nova à lua cheia.

(Café Contexto 10/52)

domingo, 1 de março de 2015

Sono

Sono. Suspensão da consciência voluntária e moderação das percepções sensoriais. Parar de mente. Vigília de parte. Baixar de braços. Baixar de armas. Dar de si. Relaxamento. Descanso. Puro prazer da sesta. Aconchego abençoado e reparador numa tarde abençoada de sofá.
Hipnos acompanha-me e sou levada em braços por Morfeu.
Som na rua. Os olhos abrem-se. Morfeu envolve-me calmamente com o seu cobertor de estrelas e os sonhos continuam.

(Café Contexto 9/52)