domingo, 26 de abril de 2015

Planisfério

Quanto de mim não cabe na tua pele. E se estes lençóis falassem, teriam mil histórias a contar. Quanto de nós já por eles passou. Quanto de nós se criou entre eles. Tu fizeste-me e eu a ti. Fomo-nos esboçando. Desenhar de personalidade, moldada e marcada nos vincos da nossa cama. Mapa de sonhos, planisfério de vida. Todas as palavras, lágrimas e suores trocados no oceano profundo de amores. Projecções de mil luas no teu corpo nu. O teu toque quente. Os teus braços, envolvendo-me. Eu, a dormir no teu peito, escutando, o que me pertence.
O passar do tempo.
Ver-te adormecer dia após dia. E dormires, indefesa e tranquila, ao meu lado. Todos os acordares em conjunto. A luz do teu sorriso numa qualquer manhã.
Todos os instantes que passamos juntos. Os teus pés sempre descalços, livres calcorreadores de estradas e dos vastos caminhos dos meus pensamentos.
Tu, metade de mim. Volta rápido. Fazes-me falta.
O espaço vazio entre os lençóis espera-te. Brancos e imaculados como sempre.
  
(Café Contexto 17/52)

Fotografia de JPedro Martins

 

domingo, 19 de abril de 2015

Espera

‘’Somos feitos da mesma matéria que os sonhos.’’
 

Um acordar prematuro. Uma travessia de cidade a pé acelerado. Um cruzamento com dez mil atletas correndo, desenfreadamente. Um metro, um comboio, um eléctrico e um autocarro depois. Trinta e cinco minutos de caminho duvidoso a mais. Uma paragem num descampado no meio do nada. Uma caminhada silenciosa para um aeroporto no meio de nenhures.
Um par de horas a aguardar, inactividade total de tráfico aéreo. Num verde imenso, num minúsculo aeródromo com mais pássaros que máquinas voadoras.
Pessoas tão fisicamente diferentes, quanto as nacionalidades. Uma língua invariável. Uma espera, uma fila. Dissertação.
Descontraidamente sentada. Aproveitando o balanço coerente e regular da viagem. O que acontece quando estamos demasiado confortáveis no percurso que traçamos? Aquele que damos como certo? Estamos bem, a vida desliza aos nossos olhos. Neste instante. Neste mesmo instante. Estaremos nós exactamente no sítio onde é suposto estarmos? Esse apreciar da paisagem. Não nos afasta ou desvia o olhar da outra viagem que deveríamos estar a realizar, neste momento? Serão só comodidades? Falsos positivos. Falsos felizes.
Porque ficamos tão ansiosos com a mudança? Porque nos é ela tão intrinsecamente anormal. Tememos o desconhecido. Faz-nos confusão o estranho, o que ainda há de vir. O que são então os sonhos e de onde vêm? Estão presos ao aqui e agora? Ou completamente distintos? Vivem sozinhos? Ânsias, desejos ocultos, vontades escondidas. Como um papagaio de papel de tonalidades garridas. Bem longe, com um fio bem comprido. Preso a nós por uma ligação bem fininha. Puxamos. Com jeito. Bem lentamente. Para que uma rajada de vento não nos faça largar mão. À medida que enrolamos a corda, vão ficando cada vez mais claros. Menos distantes, menos difusos. Menos ilusão, menos desilusão. Coloridas eventualidades de sonhos bonitos.
Nem todos os dias se conseguem pôr estrelas de papel de seda a voar. Espera-se a melhor hora, o melhor momento, a ausência de chuva. Com vento certo e sol quente, as inquietações passam a certezas, as possibilidades passam a infinitas. Basta aguardar o tempo perfeito.
 
(Café Contexto 16/52)

domingo, 12 de abril de 2015

Manual de Intruções

Para si, indivíduo masculino a ler este texto. Apague já todas as réstias de esperança face ao título da peça. Não há manual. Não há instruções. Só mulheres. Complicadas, por sinal.

Somos deusas antigas, musas, o sagrado feminismo. Vinte e oito dias de ciclo menstrual, vinte e oito dias de ciclo lunar. Subjugadas ao poder da mãe lua, que move rios, que mexe marés, que nos dificulta a vida, nalguma mais particular altura do mês. De natureza mutável, e instintos audazes, auspiciosas e alegres num segundo, deprimidas e melancólicas em instantes fugazes. Apaixonantes, sensíveis e com necessidade de acolher, numa miscelânea de hormonas, decisões e emoções. Somos muito difíceis de lidar, impossíveis de compreender.
Nunca sabemos realmente o que queremos. O que não queremos, como queremos, onde queremos, ou se ainda queremos. Não tem a ver com o querer em si, mas com um sentimento de indecisão constante que toma parte de nós. Que se entranha nas nossas decisões, que nos ofusca os desejos.
Porque as outras são mais magras, mais gordas, com melhores mamas, melhores rabos. Maiores cabelos, maiores pestanas. menos pês, menos pêlos.
A concorrência é feroz, as comparações inevitáveis.
O que queremos então, pergunta-se?
Queremos um parceiro honesto, sincero, sensível. Que partilhe a sua alma, que se preocupe, que se dê. Alguém responsável e louco. Que nos divirta, que nos faça chorar de tanto rir. Alguém que comunique e não se feche em si próprio. Alguém espontâneo e sem pudor. Alguém sem medo, destemido. Mais que um marido, um amigo.
Queremos um homem que não ligue a celulites, a gordurinhas ou a pregas. Que nos diga que temos a barriga saída mais sensual de sempre, que estrias são experiências de vida, que nos lembram o que já fomos. Curvas são precisas, para terem por onde agarrar. Pernas levam-nos onde queremos e que Deus escreve direito por linhas curvilíneas.
Queremos que nos digam que estamos bonitas. Quando perguntamos, quando não perguntamos, a toda a hora.
Que o espelho reprovador está certo, os nossos olhos é que estão errados.
Que qualquer um dos vestidos que temos em mão e pelo quais não conseguimos optar nos fica a matar. E que o terceiro, que acabamos por escolher, é o certo.
Que amarelo também é cor. Que nos dá luz, que nos fica bem à cara.
Que sapatilhas são tão interessantes a um homem, quanto saltos agulha vertiginosos e matadores.
Que maquilhagem é supérflua. Mas um batom vermelho é sempre um batom vermelho.
Que somos deslumbrantes quando temos o cabelo desgrenhado, as mesmas calças de ganga de sempre e uma qualquer t-shirt que tenha aparecido primeiro.
Que somos sexys a toda a hora. Até em tarefas mais mundanas.
Queremos um homem que cozinhe por nós e para nós. Que estenda a roupa ou deite os miúdos, quando chegamos, após um interminável dia, estouradas a casa.
Queremos um homem que nos mostre amor publicamente. Um entrelaçar de mãos, um beijo roubado, lábios tocados de cumprimento em frente de um público não escolhido.
Alguém que nos dê carinho, nos ame, nos cuide. Que mexa connosco, nos mude. Alguém com defeitos mais interessantes que virtudes. Alguém que erre, alguém que tente. Um homem quente, um homem ardente.
Alguém com quem partilhar o sono, os sonhos e os lençóis. Partilhar uma vida, melhorar o melhor de nós.

Esqueça todas as instruções acima descritas. Apague tudo da sua memória. Apreenda tudo de novo. Todas nós somos diferentes. Esqueça o manual. Apanhe-nos desprevenidas. Surpreenda-nos. Experimente devagarinho. Experimente com cautela. Atente à lua. Paciência e muito amor bastam.

(Café Contexto 15/52)

domingo, 5 de abril de 2015

Mazurka

Costas, postura, centro.
Mãos, toque, palmas, conexão.
Pontas dos pés, calcanhares, raízes.
Par, igual, semelhante.
Baile. Danças, giros, rodopios, ondulações. Tremeres. Vacilares.
Simetrias, padrões, mandalas. Partilhas.
Respiração. Escuta. Pulsação. Desaparecimento do espaço em redor. Instantes suspensos.
O aproveitar do momento, desconhecendo o andamento que se lhe segue.
-A menina dança?

(Café Contexto 14/52)