domingo, 17 de maio de 2015

Retalhos

Havia um gato. Sem nome importante a referir. Era apenas gato. E gato ficou.
Começou por lhe atirar fiambre. Para o telhado do vizinho, imediatamente abaixo do seu. A habitual manta de retalhos onde se espreguiçava feliz ao sol. Ele voltou e ficaram amigos. O único verdadeiro, e ainda vivo.
Havia uma menina que lhe trazia o almoço e a sopa passada, que lhe servia de jantar. Punha a mesa sempre impecável pois nunca sabia quando ia ser a sua última refeição. Uma mesa como aquelas, digna de um rei, de uma celebração, de companhia. Imaculada e esquecida.
Fazia palavras cruzadas, separadas carinhosamente e que vinham na marmita do almoço. O resto do tempo era passado a ver televisão. Programas fúteis, que não gostava; mas que lhe enchiam a casa com pessoas a sério, com barulhos de gente.
Já quase não saia de casa. Uma vez por semana rebocava, a muito custo, o seu carrinho de compras e ia ao mercado à mesma banca dos últimos cinquenta anos. Uma vez por mês à farmácia, onde pedia sempre para ver a tensão. Sempre demasiado baixa, inaudível, quase inexistente.
Um coração que silvava baixinho. Abafado. Em surdina.
Um coração partido há mais de vinte anos já deveria ter parado há mais tempo. Perde fulgor aos poucos. Apaga-se em câmara lenta.
Mais de doze por dia. Rebuçados, chamava-lhes ela. Todo uma multiplicidade de doenças emaranhadas nas outras. Há demasiado tempo.
As mãos, angulares, nodulosas, enraizadas. Dobradas, retorcidas e dependentes com o passar dos anos.
Mexia-se lentamente, ou quase não se mexia. Esquecia-se até de se mexer, por vezes. Movimentos quase encenados, quase teatrais. Numa cadência tão própria, tão particular, tão perpétua.
E as dores. Sempre as dores. Pioravam com a mudança das núvens e cravavam-se-lhe quando havia chuva. Rezava pelo sol. E algum consolo.
O passar dos dias intermináveis. A mudança de sol a luas. A mudança das estações.
Só queria não ter dores por um segundo. Sair da sua casa-casulo cinzenta para a manta de retalhos colorida e apanhar sol. Só por um dia. Ser um gato.
  
(Café Contexto 20/52)

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